Alessandra Diamante, Azulmara Rodrigues, Luciene Hermann e Moisés Santos -
O que se pode concluir do universo feminino através da declaração de Noel, de que “a mulher é o aperitivo que anima o homem a comer o prato indigesto da vida”? A frase data de 1930, ano que marca seus vinte anos do pouco tempo em que viveu.
Noel devotou à mulher muitas de suas composições, quase sempre em resposta aos embaraços que se envolvia, já que não era homem de “aperitivo” único, e seu gosto era bem variado. Assim vivia um romance com sua primeira paixão, Fina, simultaneamente com Clara.
Na máxima “um é bom, dois é bom...”, três nunca seria demais! E no mesmo segundo semestre de 1932 que abarcava a relação Noel-Fina, Noel-Clara, é que se dá Noel-Julinha. Tudo isso faz crer que sua habilidade não era tão somente a musical.
Namoro dos Tempos de Colégio...
Desde os tempos em que usava o uniforme do São Bento, onde cursava o ginásio, iniciara o namoro com Clara Corrêa Neto. Foram seis ou sete anos nos fins de tarde frente ao portão à espera do amado. Nem sempre seus anseios eram atendidos, já que ele eventualmente sumia e reaparecia com promessas. Ela por sua vez, estava sempre bem disposta a perdoá-lo como nos versos da canção Não morre tão cedo:
Você mostrou que tem bom coração
Sabe que estou sem a razão
Mas vem me dar o seu perdão
Você não trata a gente com desdém
Não guarda ódio de ninguém
E paga sempre o mal com bem
Quando o romance chegou ao fim, ela sofreu e muito! Noel marcaria tanto sua vida, que passados 49 anos do término do namoro, em entrevista para o livro de João Máximo e Carlos Didier, Noel Rosa: Uma Biografia, não negaria ter sido ele seu grande amor.
A primeira paixão...
Como não responder aos apelos da canção Três Apitos, feita para a operária Josefina Telles Nunes, que carrega em seus versos:
Você que atende ao apito de uma chaminé de barro
Porque não atende ao grito
Tão aflito
Da buzina do meu carro
Noel identificava-se com seu jeito alegre e sua sede de viver descompromissada.
Uma “Musa” ideal...
Júlia Bernardes era bem diferente de Clara e Fina. Sem recatos, alta, carregada de maquiagem, não tinha cabaré cativo e tão pouco namorado. Torna-se modelo perfeito para as músicas que serão geradas a partir de então: mentiras e falsidades nas regras baixas do jogo do amor. Ingredientes perfeitos para compor a receita do anti-romantismo de Noel, estabelecendo que o “eu te amo” nunca fará parte de suas canções. Para elas reservava as queixas dos relacionamentos vividos com uma pitada picante de ironia, uma de suas poderosas marcas.
Na saúde, na doença, até que a morte os separe...
Tantos sambas renderam ainda a aquisição de um carro, apelidado por ele de Pavão. Em seu volante abrigava as moças das redondezas, assediadas por ele quando as provocava ao som da buzina. É na primavera de 1933 que Lindaura se rende ao cantor de rádio.
Morena, quando menina foi aluna de D. Martha, mãe de Noel. Aos 17 anos, seu corpo de mulher afastaria de qualquer memória a lembrança da garotinha da época da alfabetização.
Passam a sair todas as noites, sozinhos ou em companhia de outro casal. Dos passeios próximos ao bairro, passam a ousar cada vez mais partindo para locais distantes. Eis que uma das aventuras custaria uma cobrança cara a Noel. Dona Olindina, mãe de Lindaura, intolerante a um passeio mais que demorado da filha, decide insistir no casamento dos dois. D. Martha o acusa de ter seduzido menor de idade.
Às cobranças para que casasse, responde com os acordes de Capricho de Rapaz Solteiro:
A mulher é um achado
Que nos perde e nos atrasa
Não há malandro casado,
Pois malandro não se casa
O tempo passa e a pressão para o casamento não surte efeito.
Seu único “Amor”...
Muitas homenagens a artistas da música popular eram feitas nos cabarés da Lapa. Na noite que agraciava Noel no cabaré Apollo, a decoração ficou por conta do clima junino. Pista de dança intransitável. Todos aguardavam o músico. Noel teve que sair às escondidas de outra festa junina na Ilha do Governador, em que Lindaura estava com ele. Como não pretendia levá-la à noite de sua homenagem, só lhe restava a fuga.
Finalmente chega a atração principal da festa de São João do Apollo. Noel canta e num dado momento avista uma moça bem diferente das que circulam nos cabarés. Não seria a idade, jovem de dezesseis anos, tão pouco os trajes que usava. Mas por seu jeito tímido e delicado, tão contrastante ao cenário de um cabaré. De fato era a primeira noite de Juraci Correia de Moraes naquele ambiente. Uma Ceci bem diferente da cantada nos versos de Dama do Cabaré:
Foi num cabaré na Lapa
Que eu conheci você
Fumando cigarro
Entornando champanhe no seu soirée
O hábito de fumar e de trajar soirée passaria a ser algo natural em Ceci. Assim como os encontros com Noel para as danças, palestras e noites de amor. Encontros estes, interrompidos pela tuberculose a que foi acometido.
Dez dias antes de completar 24 anos, casa-se com Lindaura. Sua saúde já estava bem debilitada. Por orientação do médico ele deveria procurar um clima longe do Rio para sua recuperação. A esposa o acompanha para os cuidados em Belo Horizonte.
O tratamento da doença é longo, mas para Noel durou apenas o tempo que suportaria longe da boemia de Vila Isabel.
Volta no ano seguinte mais gordo e corado. Aparência boa para indicar que estava curado, quando na realidade havia apenas um controle da doença. É da voz de D. Martha que houve os nomes dos amigos que foram perguntar por ele. A descrição de uma moça bonita e elegante, não deixa dúvida de que Ceci o havia procurado. Descrente e irônico no quesito romantismo, lança mão à melodia de Ilustre Visita em parceria com Vadico:
E pelas informações que recebi
Ceci
A ilustre visita era você
Porque
Não existe nessa vida
Pessoa mais fingida
Nas apresentações posteriores, o título do samba muda para “Só pode ser você”. E o nome Ceci é cantado como “Já vi”, trecho, aliás, que só foi alterado por impulso na primeira apresentação.
A essa altura restava a Lindaura as amarguras de lidar com a ilusão de que o casamento lhe traria um novo Noel. Em uma queda, perdeu o bebê que seria o único filho do compositor. À ela coube a música Você vai se quiser, uma resposta de Noel ao seu interesse em trabalhar, já que em casa a situação não andava boa.
Segundo o fascículo MPB Compositores da Editora Globo, Lindaura declarou que o seu casamento foi um misto de alguns momentos hilários e outros tristes. Relatou que muitas vezes Noel a esquecia em alguns lugares. Em contrapartida, recorda também do marido apaixonado que teve. Tinha por hábito deixar bilhetinhos românticos para ela ler ao acordar, de manhãzinha. Antes do Poeta da Vila chegar da noitada!
Humor, acidez, ironia, desilusão... atributos reunidos em 26 anos de uma vida em que a presença feminina sempre foi envolvente e impactante. Não poderíamos deixar de lembrar que o bandolim lhe foi ensinado por sua mãe, D. Martha. Tão pouco que seu primeiro contato com a morte se deu a através de sua avó D. Bella, que cometeu suicídio e foi o neto Noel o primeiro da família a vê-la.
A grande intérprete...
No campo da amizade, Aracy de Almeida. Dispensamos maiores comentários, frente as palavras do próprio Noel, em entrevista para “A Pátria”, em 4 de janeiro de 1936: "Aracy de Almeida é, na minha opinião, a pessoa que interpreta com exatidão o que eu produzo".
São registros que só couberam à sua existência e que, unidos aos muitos romances e noites afins que viveu, resultaram em suas mais de 300 composições. Não há dúvida de que o prato indigesto da vida pôde ser bem incrementado aos muitos aperitivos para todos os gostos e desgostos.
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